Médico: dano moral não configurado - vinte anos depois 04.11.2019 • por Diego Mariante Cardoso

Há vinte anos, escrevi o artigo abaixo, no contexto de nossa atuação em defesa médica – ele foi publicado na Revista do SIMERS. Desenvolvíamos, então, esta especialidade há alguns anos. Eis o artigo: 

“Médico: dano moral não configurado 

 O tão em voga dano moral é um dos mais valiosos institutos jurídicos, por ensejar a tutela do Poder Judiciário a valores importantes e intangíveis do ser humano.

 No entanto, pessoas inescrupulosas desvirtuam seu sentido, para auferir vantagens patrimoniais a partir de alegações vazias que submetem ao Poder Judiciário e nada provam. Não é elencada em lei uma casuística do dano moral: a definição do mesmo cabe à doutrina e jurisprudência, sendo esta última quem define, na prática cotidiana, sua ocorrência. A lei traz apenas a previsão genérica de indenização do dano moral. E a simplificação indica que ele ocorre sempre que houver sofrimento decorrente de ato de outrem, necessária a culpa, o nexo causal entre o ato e o dano.

 Nesse quadro, muitas pessoas têm apresentado ao Poder Judiciário pretensos danos morais, os quais, no final do processo, consideram-se não ocorridos, infirmando-se as alegações – em grande parte dos casos, inventivas – do autor da ação.

 Notoriamente, corre uma época em que a classe médica sofre um ataque massivo, via ações judiciais, por parte de pessoas que se afirmam insatisfeitas, processando médicos sem ter a mínima idéia da existência de efetiva responsabilidade do profissional, postulando danos morais sem o mínimo fundamento, numa atitude lotérica, buscando o que, em Direito, denomina-se enriquecimento ilícito, sem causa.

 O acórdão abaixo, na apelação cível nº 1.777/97, da 7ª Câmara Cível do Rio de Janeiro, é um exemplo do que foi acima explicitado, no sentido do não acolhimento do pedido de danos morais, pois tal não se configurou:

     “PROCEDIMENTO SUMÁRIO COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAL. Autor que ingressou no Hospital Estadual Getúlio Vargas para reimplante da orelha esquerda, decepada em acidente no trabalho de microempresa. Alegada culpa da equipe médica de plantão, ao não ser realizado o viável reimplante. Sentença de improcedência. Justificativas razoáveis da ficha operatória, além de ainda ser exceção, e não a regra, o sucesso do reimplante. Desprovimento do apelo.”

 Traz-se à baila um caso de reimplante para ter-se noção do nível de aventura em trânsito no Judiciário, quando o paciente já entende ocorrência de culpa do médico se há rejeição, a qualquer título, ou seja, alvitra-se, absurdamente, uma obrigação de resultado e se a debita ao médico. Eis a linha do despropósito, isto é, do mau uso do instituto jurídico.

 Importante, ainda, destacar-se o reconhecimento, por parte do acórdão, da grande possibilidade de insucesso em lugar de êxito, inobstante a qualidade dos cirurgiões incumbidos desta atividade. Diz um trecho do acórdão que “é do conhecimento comum, na ciência médica atual, que um reimplante só deve ser realizado em certas circunstâncias, sendo provável, a despeito do zelo, habilidade e competência dos cirurgiões incumbidos de tais cirurgias, ocorrer o insucesso em lugar do êxito, acentuadamente no caso de orelha, que é cartilagem bem pouco vascularizada”.

 Todavia, não apenas ao médico é direcionada a sanha do dano moral no afã do ganho fácil: outras áreas da relação humana vêm-se, da mesma sorte, atingidas, como se lê do acórdão abaixo, publicado na Revista dos Tribunais, 752/344, oriundo da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

     “AÇÃO INDENIZATÓRIA – Dano moral – União estável – Infidelidade – Reparação pretendida em face do convivente infiel e do terceiro, parte alheia no contrato existente – Inadmissibilidade – Verba indevida.

     Ementa Oficial: A quebra de um dos deveres inerentes à união estável, a fidelidade, não gera o dever de indenizar, nem a quem o quebra, um dos conviventes, e menos, ainda, a um terceiro que não integra o contrato existente e que é, em relação a este, parte alheia.”

 Note-se a extrema peculiaridade da situação fática, e se colha dela a amplitude a que atinge a pretensão corrente do referido dano moral, o que leva o Judiciário, através do Acórdão exarado na Apelação Cível nº 599204229, da 5ª Câmara Cível, a assentar:

 “O brasileiro aprendeu a buscar indenização; mas não aprendeu, nem quer, se educar para buscar soluções a dúvidas corriqueiras.

No caso concreto, em vez de buscarem um médico para saber o que fazer, foram buscar a indenização. Em vez de buscar uma resposta àquela situação, criam um conflito e vão pleitear o seu pretenso direito no Judiciário. Às vezes penso que nossa seriedade está sendo posta à prova”.

 Vivíamos, então, não a época do início das ações de indenização de dano moral (a Constituição Federal de 1988 consagrou este instituto), mas talvez o surgimento do mau uso do mesmo em aventuras judiciais. As proféticas palavras do acórdão acima nunca fizeram tanto sentido: mal se sabia quantas vezes, e de quantas formas nossa seriedade ainda seria posta à prova. A classe médica segue sendo bombardeada impiedosamente por ações indenizatórias dos mais variados tipos; sua defesa, portanto, é progressivamente mais complexa e necessária.